quarta-feira, 1 de junho de 2011

Diário II - Limite Branco

Deus. Eu acho que o problema maior em relação a Deus não é o crer ou descrer — é sentir ou não sentir. Não há uma crença sem o sentimento profundo, enraizado, de que ele existe e está em nós. Ou se há, é uma crença completamente falsa, como quase todas que conheço. E eu não sei se creio ou não porque ainda não senti.

Ontem isso quase aconteceu. Foi na hora que a chuva parou, à tardinha. De repente parei de ler o livro que tinha nas mãos e senti vontade de me aproximar da janela. Vi então as árvores da praça, ainda pesadas de gotas d’água, vi o asfalto que parecia novo, o céu lavado, algumas pessoas ainda com guarda-chuva, um arco-íris lá no fundo, atrás dos morros. O sol estava se pondo também, e embora eu não pudesse vê-lo, enxergava os caminhos coloridos que seus raios pintavam nas paredes dos edifícios. E — de repente — senti. Estava tudo muito bonito, e muitas vezes eu choro quando tudo está assim, bonito. Mas não foi isso.

Comecei a olhar as coisas desde os detalhes da janela até lá onde estava o arco-íris. Olhei o vidro quebrado, o carros estacionados lá embaixo, o asfalto, as pessoas, as árvores, a praça — meu olhar subindo cada vez mais. À medida que subia, eu ia esquecendo de meu corpo, esquecendo de mim. Quando olhei o arco-íris, me desprendi quase totalmente. Não adianta, não, sei explicar. As palavras traem o que a gente sente. Mas sei que, por um instante, quase senti. Como se eu soubesse que havia uma pessoa atrás de mim, mas fingisse não ver, embora conservasse o corpo tenso, à espera de que me tocasse o ombro. Tive uma consciência muito grande de meu corpo e, ao mesmo tempo, um esquecimento total. Fechei os olhos, cruzei os braços apertando a mão contra a camisa, pensando com força: “É agora, é agora, é agora.” Como um conhecimento que vinha e, quando eu abria as mãos para segurá-lo, escapava. Eu precisava me concentrar de novo, pensar muito fundo, em nada, quase sem respirar, para que ele e aproximasse de novo. Aos poucos fui-me desligando do que havia em volta, fixado somente naquela espécie de onda que crescia, crescia dentro de mim, mas nunca quebrava. Em certo momento, senti que tudo tinha se tornado mais intenso. Subiu uma espécie de arrepio pelas pernas, um calor como se alguém pousasse a mão sobre a minha cabeça. Foi então que me entreguei. Alguma coisa ia ser definida, uma coisa que eu nunca vira antes e não sabia exatamente o que era. Quando ela quis desenrolar-se para atingir não sei se meu cérebro ou meu coração, veio um barulho de bonde gritando nos trilhos lá embaixo.

Abri os olhos. E percebi que tinha ficado muito tempo ali, pois tinha escurecido. Fechei os olhos de novo, tornei a cruzar o braços, esperei, repeti baixinho: “É agora, é agora...” Mas nada mais aconteceu. Depois fiquei pensando: por que, afinal, relacionar isso com Deus? Poderia ser simplesmente uma emoção estética, qualquer coisa assim. Não sei explicar por que escrevo isso, mas sei que não era. Não foi, também, um sentimento passageiro. Tanto não foi que estou ate agora envolvido nele. Parece que me deu mais profundidade, um pouco mais de fé, de certeza, como se eu tivesse vivido uma vida inteira naqueles minutos e soubesse, então, que existe algo por trás.

Não sei dizer se tenho necessidade de Deus. Acho que sim, senão não existiriam estas indagações, estas dúvidas, senão não haveria esta página neste caderno. Já passei pela fase do automatismo, quando Deus se resumia a umas rezas apressadas antes de dormi, ou a uma lembrança mais ardente em véspera de prova difícil. Já passei também pelo ateísmo, embora fosse só de fachada. “Deus está morto”— eu repetia, citando frases de livros que não lera. Mamãe e papai se escandalizavam, eu me achava o máximo da intelectualização. Depois fui vendo que não podia resolver o problema assim da mão para o pé; que eu, Maurício, pouco mais que uma criança, não era ninguém para tentar resolvê-lo. Achei que seria melhor esquecer. Foi o que tentei fazer. O que estou tentando. Mas de vez em quando acontecem essas ameaças de revelações, e as dúvidas voltam.

De qualquer maneira, acho que se não existe Deus — ou qualquer outra força cósmica a que se possa dar esse nome — tudo é um grande caos. Uma grande merda, para ser bem claro. Todas essas filosofagens e angústias, essa procura de uma definição, de um caminho — tudo isso seria tão ridículo sem Deus. E são tudo hipóteses. Ninguém pode saber nada sobre Deus antes de morrer. Ou talvez possa — quem sabe? Os santos os iluminados? Talvez existam mesmo “os escolhidos”.

Mas este é um problema que não vou resolver em três ou quatro páginas de caderno, embora goste de pensar sobre ele. Inútil, portanto forçar o cérebro. E além do mais, fico muito etéreo quando escrevo sobre isso. Subo a tais alturas que depois é quase impossível descer. E eu quero descer para falar sobre algo bem concreto: a minha solidão.

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O sonho de toda palavra é sentir o que tenta explicar.